O desafio da gestão do conhecimento na doença de Parkinson

Marcus Carvalho Fonseca

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Os conteúdos apresentados neste texto são apenas informativos e não se constituem em artigo técnico científico. Seu objetivo, junto com os demais textos disponíveis aqui no website é, por meio de uma abordagem introdutória de temas pouco discutidos entre nós, contribuir para que possamos entender com mais clareza o contexto da doença de Parkinson (DP). É importante ressaltar que não sou profissional da área da saúde. Portanto, não utilize de forma alguma nenhuma parte do conteúdo para automedicação. Trata-se de um conjunto de informações obtidas pela experiência e conhecimento adquiridos ao longo de anos com Parkinson e em pesquisas na internet. Ou seja, um texto escrito por um leigo para leigos.

Meus agradecimentos ao Prof. Dr. Clynton Correa, Coordenador do GEDOPA – UFRJ, pelas críticas e sugestões.

 

Desde o meu diagnóstico da DP, em 2014, nesses longos anos de intensa convivência com profissionais da saúde, participando de consultas individuais presenciais e à distância e terapias individuais e coletivas, presenciais e à distância, tenho observado como são diferentes as abordagens terapêuticas desses profissionais nas suas relações com os pacientes.

A diferença geralmente começa no acolhimento. A despeito das suas especificidades técnicas, a diferença fundamental entre acolher e atender é o conteúdo emocional existente no momento da sua realização, quando na relação com os pacientes é demonstrada uma sincera disposição de entendê-los e ajudá-los.

Essa competência relacional (habilidades e atitudes facilitadoras do relacionamento profissional / paciente) faz parte de um processo que envolve a escuta, o entendimento da demanda, a informação e o eventual encaminhamento para a instância responsável pela resolutividade. Nesse processo há uma forte influência da variável “conhecimento” que é provida pelo desenvolvimento da ciência e pela experiência acumulada pelo profissional em questão. Habilidades relacionais, conhecimento e experiência compõem um grupo de competências distintivas para um profissional da saúde. Proatividade, criatividade, liderança, flexibilidade, capacidade de trabalhar em equipe, dentre outras, são competências também importantes que serão mais ou menos exigidas em função do contexto de suas responsabilidades.

Muitas vezes na DP a instância de resolutividade não se restringe a uma única especialidade como a neurologia por exemplo, já que as suas necessidades exigem uma abordagem multidisciplinar a partir da neurologia e que podem (e devem) envolver diversos profissionais da área da saúde: Fisioterapeutas, Terapeutas Ocupacionais, Psicólogos, Nutricionistas, Fonoaudiólogos, Enfermeiros, Assistentes Sociais, Farmacêuticos e Profissionais de Educação Física, dentre outros. É a partir desse ponto que a gestão do conhecimento se mostra mais evidente e necessária; como desenvolver e compartilhar o conhecimento com tantos atores em cena? Esta questão não é nova se considerarmos que ciência é geração de conhecimento e método de obtê-lo. Conhecimento para explicar os diferentes fenômenos, naturais ou não, e método para descrever e prever os fenômenos a partir de procedimentos que possam ser verificados e reproduzidos. Daí surge a disciplinaridade como método universalmente utilizado para a gestão do conhecimento.

A abordagem disciplinar está presente na elaboração dos currículos das faculdades, nos protocolos de atendimento e em documentos com conjuntos específicos de conhecimentos com suas próprias características. Essa prática historicamente facilitou a organização e a disseminação do conhecimento, mas por outro lado o apresentou geralmente de forma fragmentada e desarticulada, e é dessa forma que sua influência determina uma série de características que são realizadas hoje no ambiente da saúde.  Uma das suas históricas causas básicas é a superespecialização de profissionais que se tornavam “donos” de determinados assuntos no âmbito organizacional, impondo paradigmas sobre a importância superior de sua disciplina em relação a outras.

A disciplinaridade pode ser considerada consequência da visão cartesiana já que faz uso do pensamento reducionista para melhor compreender a realidade, separando o objeto de seu ambiente e de suas relações para estudá-lo. Como sabemos, com os paradigmas da visão orgânica, sistêmica e holística da vida, o mundo não pode mais ser entendido pela análise de suas partes, mas sim pela sua unicidade e pela interdependência de suas relações. Mas isso não significa o fim ou a irrelevância da disciplinaridade, apenas sua evolução com novos paradigmas.

Multiespecialidade, multiprofissionalidade e multidisciplinaridade são termos que provavelmente você já ouviu ou talvez tenha lido, mas que provavelmente não lhe despertaram o interesse devido.

Nos ambientes da área da saúde onde essas coisas estão misturadas e sem uma gestão convergente, é um desafio entender como se desenvolve, se dissemina e se utiliza conhecimento sobre a DP, uma vez que sabemos que a intervenção conjunta e articulada desses profissionais, mais particularmente no caso do SUS, é quase uma utopia (geralmente falta tempo aos profissionais para realizarem uma anamnese detalhada e compartilhar o resultado com outros profissionais). Isso que acabei de dizer pode ser entendido como: o tratamento que me está sendo prescrito relativo à DP contempla todas as minhas necessidades em relação à doença?

Provavelmente não, já que as barreiras para se atingir essa condição são imensas. Para entender melhor como chegar a uma conclusão sobre a questão proposta, sugiro fazer uma rápida passada na teoria [1] sobre as diferentes formas de disciplinaridade.

A disciplinaridade, como eu a entendo e aplico nesse texto, diz respeito à uma área específica do conhecimento, a uma forma de transmitir esse conhecimento. Para muitos de nós, pessoas com DP, talvez esta seja a primeira vez que nos deparamos com esse assunto que, podem ter certeza, é de extrema relevância para o tratamento da doença, pelo menos no nível de consciência de suas prescrições.

Multidisciplinaridade é uma das formas de compartilhamento do conhecimento. Ocorre quando há mais de uma área de conhecimento envolvida em um determinado processo ou projeto, e cada uma dessas áreas cumpre seu papel de forma autônoma. Nesse modelo não há, normalmente, planejamento centralizado e coordenação das atividades; cada especialidade administra suas agendas e suas soluções, ou seja, tem-se a abordagem de um mesmo assunto por várias disciplinas, cada um trabalhando o objeto de análise conforme seus métodos. Da mesma forma que em outros paradigmas, a multidisciplinaridade é um modelo de gestão do conhecimento reconhecido há séculos e, como tal, ainda guarda um grande valor como promotor de desenvolvimento. Não devemos desconsiderar que para haver outras formas de disciplinaridade haverá de existir como base a multidisciplinaridade.

Da multi evoluímos para a interdisciplinaridade que pode ser considerada como uma forma colaborativa de trabalho que ocorre quando há participação de mais de uma área de conhecimento em um determinado processo ou projeto e, de forma planejada, essas áreas interagem com o objetivo de discutir aspectos desconhecidos e casos especiais que mereçam uma abordagem investigativa mais profunda de um determinado tema.

Na prática da integração, mais de uma disciplina se unem em torno de um objetivo comum, com um planejamento comum. Durante o processo, estas áreas trocam conhecimentos, debatem e abrem novas perspectivas de solução dos casos em análise. Isto as coloca em um círculo virtuoso que amplia seus conhecimentos e abre novas possibilidades de cooperação. Portanto, para a gestão desse tipo de equipe é indispensável que se avalie não só o conhecimento que esses profissionais possuem, como também suas atitudes e comportamentos.

Aí então aquele mais atento pergunta: essas discussões podem acontecer tanto no modelo multi como no modelo inter, certo? Com certeza! Os especialistas estão sempre trocando ideias e adquirindo novos conhecimentos, isso é real e comum de forma casual. A diferença é que nos grupos interdisciplinares existe um planejamento, uma governança que zela pelo foco das discussões e pela sua agenda como fórum permanente ou temporário de estudos e discussão de temas de interesse, como por exemplo a DP.

E quais são os requisitos para a prática da interdisciplinaridade? Na minha opinião, são dois os requisitos básicos: o primeiro é o objetivo comum, em torno do qual serão desenvolvidas as atividades do processo ou do projeto. No nosso caso esse objetivo é a busca da cura da DP e a mitigação dos seus efeitos. O segundo requisito básico é o tempo de dedicação de seus participantes; a construção de equipes de ação interdisciplinar deve ter no seu planejamento como prioridade o tempo suficiente para as discussões necessárias.

            É preciso ter em mente que trabalhar em equipe é mais do que agregar bons profissionais Só existe equipe quando todos conhecem os objetivos, estão cientes da necessidade de alcançá-los e desenvolvem uma visão crítica a respeito do desempenho de cada um e do grupo.

A interdisciplinaridade se caracteriza não só pela intensidade, mas principalmente pela qualidade das trocas entre os especialistas das diferentes disciplinas no escopo de um projeto ou mesmo de um processo. Dessa forma, a interdisciplinaridade atende não só ao objetivo de solucionar questões mais complexas, como também ao processo de capacitação de seus participantes.

É muito importante que haja informação, conscientização e sensibilização para que a DP mereça das diferentes instituições da área de saúde no Brasil uma atenção especial para os diferentes tipos de apoio que são necessários. Vamos disseminar informação útil e relevante.

E o que tudo isso tem a ver com a DP?

Não, não esqueci da saúde; apenas deixei sua análise para o final pois agora temos os contextos da disciplinaridade e da gestão razoavelmente entendidos.

Por tudo que vimos neste breve resumo, a saúde pode, e deve, ser considerada uma área eminentemente interdisciplinar de alta complexidade e, por isso, deve enfatizar nas suas escolas a implementação de propostas curriculares integradas. Sabemos que isto não ocorre nas nossas escolas, ou se ocorre é dentro de experiências isoladas que não alavancam massa crítica para a expansão dessas de forma sustentável, ou seja, se transformem em elementos da cultura institucional.

Evidentemente que existem protocolos clínicos para serem aplicados nos diagnósticos e tratamentos, sejam medicamentosos, cirúrgicos ou por meio de terapias diversas, mas cada paciente com DP é um caso diferente com suas particularidades e sintomas e sinais específicos.

A complexidade da DP e de seus múltiplos efeitos exige dos pacientes uma constante atenção aos seus sintomas, cujas mudanças devem ser relatadas aos profissionais que o acompanham. Esses por sua vez devem dedicar especial atenção, uma habilidade diferencial, de ouvir atentamente os sintomas relatados e buscar o melhor diagnóstico da evolução da doença, fazendo os ajustes necessários na medicação e nas terapias.

Os exemplos e argumentos até aqui apresentados dizem respeito ao que poderíamos chamar de estrutura da atenção básica fundamentada na multidisciplinaridade que envolve os sistemas de atendimento e acolhimento do cliente.

Nosso desafio agora é encontrarmos uma forma de despertarmos interesse para fazer com que cresçam em número os profissionais da saúde motivados a fazer parte de grupos de discussão sobre a DP em diferentes níveis de especialização.

Precisamos de mais especialistas em neurologia com experiência em DP. Que sejam em número cada vez maior a se dedicar aos estudos sobre a DP.

Mas quem na faculdade se interessa pela DP? Segundo o anuário do Conselho Federal de Medicina, menos de 1% dos médicos especialistas em todo o país são neurologistas; esse número cai se olharmos para os que tem conhecimento em DP. E nós só falamos da neurologia, há a fisioterapia, a psicologia e outras profissões para as quais valem os mesmos argumentos.

Precisamos encontrar uma forma de despertar interesse nas universidades para que alunos e professores tenham motivação e proatividade para discutirem e proporem projetos para a DP, nas atividades de iniciação científica, de estágio, da graduação, da pós-graduação (nas pesquisas de mestrado e doutorado), da residência médica, dos projetos de extensão.

O fato de ser a DP uma doença neurológica com um imenso leque de comprometimentos motores e não-motores pode ser considerada como um estímulo àqueles que estão iniciando seus estudos.

Sabemos muito pouco sobre a demografia da DP no Brasil. Convivemos com estimativas que variam de 200 a 500 mil pessoas com DP, para uma população de cerca de 210 milhões de brasileiros. Estima-se que em 2060, de cada 4 indivíduos no Brasil, um terá mais de 65 anos, o que se refletirá no número de pessoas com DP, já que é nessa faixa de idade que são observados mais casos de DP. Alguém está pensando nisso?

Não se forma um especialista em DP por decreto; é necessário motivação, paixão, prazer nessa escolha e muito estudo.

O que então nós, pessoas com DP, queremos, desejamos, esperamos das políticas da área da saúde? Vou tentar resumir.

Que se criem condições para que tenhamos mais especialistas em neurologia com experiência em DP. O trabalho do GEDOPA (Grupo de Estudos na Doença de Parkinson), da UFRJ é um caso de sucesso que pode servir de modelo para ser replicado pelo país. 

Que se desenvolva um programa de comunicação para a rede de atenção básica do SUS; os profissionais da saúde devem conhecer os sinais da doença e ter capacidade de identificar casos suspeitos e encaminhá-los para a neurologia.

Que as Universidades/ Serviços de Saúde tenham motivação e proatividade para discutirem, proporem e implantarem projetos de base interdisciplinar que atuem também como capacitação para formação de gestores de projetos interdisciplinares nas modalidades de iniciação científica, de estágio, da graduação, da pós-graduação, da residência médica, da residência multiprofissional, dos projetos de extensão e nas pesquisas de mestrado e doutorado, modelo de gestão de saúde.

 

Enquanto isso, seguimos firmes na expectativa de cura da doença.


[1] Para um aprofundamento no assunto, recomendo começar pelo link https://www.revistadoisat.com.br/numero1/02_A_Interdisciplinaridade_e_a_Disciplinaridade_Juliana_et_al.pdf

Sugiro também o artigo de FLÁVIO C. VASCONCELOS. Da gestão do conhecimento à gestão da ignorância: uma visão coevolucionária. RAE – Revista de Administração de Empresas • Out./Dez. 2001 São Paulo, v. 41. n. 4. p. 98-102.