Espiritualidade e Parkinson

Marcus Carvalho Fonseca

Texto disponibilizado em mar/2022 com links revistos em jul/2023. Se quiser baixar este texto em pdf clique aqui.

Os conteúdos apresentados neste texto são apenas informativos e não se constituem em artigo técnico científico. Seu objetivo, junto com os demais textos disponíveis aqui no website é, por meio de uma abordagem introdutória de temas pouco discutidos entre nós, contribuir para que possamos entender com mais clareza o contexto da doença de Parkinson (DP). É importante ressaltar que não sou profissional da área da saúde nem especialista em espiritualidade. Portanto, não utilize de forma alguma nenhuma parte do conteúdo para automedicação. Trata-se de um conjunto de informações obtidas pela experiência e conhecimento adquiridos ao longo de anos com Parkinson e em pesquisas na internet. Ou seja, são textos escritos por um leigo para leigos.

Apesar de óbvio, é importante ressaltar que quando abordamos o tema da espiritualidade, estamos tratando de um conceito e uma prática reconhecidas legalmente. Para dirimir eventuais dúvidas, apresento a seguir os links sobre o assunto, com os posicionamentos do Conselho Federal de Medicina – CFM (https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/pareceres/BR/2011/2_2011.pdf)  (último acesso em 07 de julho de 2023) e do Conselho Federal de Psicologia – CFP (https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2014/06/Texto-aprovado-na-APAF-maio-de-2013-Posicionamento-do-Sistema-Conselhos-de-Psicologia-para-a-quest%C3%A3o-da-Psicologia-Religi%C3%A3o-e-Espiritualidade-8-2.pdf) (último acesso em 07 de julho 2023).

O diagnóstico de uma doença neurológica degenerativa como a DP e a convivência com seus efeitos ao longo do tempo, geralmente despertam no indivíduo sentimentos e emoções muitas vezes difíceis de suportar. Nesse processo de enfrentamento da doença, cada um há de encontrar suas próprias estratégias para conseguir melhorar sua qualidade de vida, sua autonomia e sua independência. Para muitos, uma das formas desse enfrentamento é o exercício de sua espiritualidade para manter seu equilíbrio emocional, auxiliar seu processo de cura e manter viva sua esperança de dias melhores.

Um dos desafios ao escrever sobre espiritualidade é manter equidistância e imparcialidade no trato de questões religiosas, apesar de religião e religiosidade serem aspectos importantes da espiritualidade. Portanto, aqui não será tratada especificamente nenhuma religião; o foco é lançar luz sobre a relação da espiritualidade com a saúde com uma abordagem válida para qualquer religião.

Outro desafio relevante advém das incertezas e da complexidade do assunto. Portanto, tratar do tema da espiritualidade e saúde exige o devido cuidado de não se fazer juízo de valor sobre questões que fogem ao nosso conhecimento e entendimento.

A espiritualidade e demais termos correlatos, dada sua natureza, admitem interpretações diversas, não havendo unanimidade nas suas definições. Apenas como referência para fins de nossa abordagem, apresento a seguir algumas definições importantes que, na minha opinião, expressam o entendimento básico existente sobre o tema.

A espiritualidade é inerente ao ser humano; é a essência de sua capacidade de perceber o intangível, de lidar com diferentes formas de energia, de buscar a própria evolução espiritual e de entender como sua natureza imaterial o eleva à condição de formular questões complexas como “que propósito tem minha vida?”, “que tipo de pessoa eu quero ser?”, “quais os caminhos para minha elevação espiritual?”, “como buscar harmonia entre mente, corpo e alma?”, “como buscar essa harmonia tendo uma doença degenerativa como o Parkinson?” dentre outras.

Um aspecto importante que merece atenção é não confundir espiritualidade com espiritismo; são coisas diferentes, sendo o espiritismo uma doutrina filosófica e moral para uns e uma religião para outros. Quem tiver interesse nessa discussão vai encontrar no link https://www.letraespirita.blog.br/single-post/o-espiritismo-%C3%A9-religi%C3%A3o (último acesso em 07 de julho 2023) uma boa leitura sobre o tema

A é um sentimento de crença total em algo ou alguém, ainda que não haja evidências suficientes que comprovem a veracidade daquilo em que se acredita. Desse conceito de fé derivam “verdades” que têm relação com a espiritualidade; são elas:

  • ter fé implica ter confiança;
  • ter confiança significa ter certeza do comportamento futuro de alguém;
  • em situações de crise, ter fé significa ter certeza de que algo vai mudar de forma positiva, para melhor;
  • a fé é inquestionável, não necessita de comprovação.

O fato de a fé ser inquestionável e não necessitar de comprovação não significa que o indivíduo não deva aprofundar seus conhecimentos e buscar a elevação de sua espiritualidade. Quando a fé é um valor que o indivíduo agrega à sua espiritualidade, geralmente ele eleva seu sentimento de propósito na vida, o que lhe proporciona mais confiança para enfrentar as adversidades.

Deixei por último a descrição dos termos alma e espírito pelas polêmicas que ainda persistem sobre o que cada um representa, especialmente nas suas relações com o corpo. Há aqueles que entendem o homem como um ser que se divide em duas partes: corpo e alma e consideram alma e espírito como sendo a mesma coisa. Do outro lado há aqueles que consideram o homem constituído por três partes, corpo, alma e espírito, onde alma e espírito são coisas diferentes.

Muito resumidamente, as duas correntes de pensamento representam o princípio da nossa existência como seres humanos, em todos os aspectos da nossa imaterialidade. Particularmente entendo minha alma como o princípio vital que anima meu corpo e minha vida. A alma define realmente quem eu sou, meus sentimentos, minhas emoções e minha espiritualidade. Segundo o princípio vitalista existe uma energia, denominada de energia vital, que regula o organismo de forma dinâmica e harmônica, sendo responsável por todos os fenômenos fisiológicos e que, quando em desequilíbrio, gera os sintomas de adoecimento.

Esse entendimento de que a alma e o espírito são uma forma de energia unida ao corpo físico, responsável pela manutenção da saúde e da vida e que anima a matéria, é a base de várias terapias que identificam no corpo pontos ou fluxos de energia. Por exemplo, de acordo com os textos védicos sagrados no hinduísmo, existem milhares de centros energéticos localizados em nosso corpo, os chakras, sendo os mais importantes os sete que estão localizados ao longo da coluna vertebral. Cada um tem uma área de atuação específica, sendo o chakra coronário localizado no topo da cabeça o que responde à nossa conexão com o mundo espiritual, com as energias do universo e com o cérebro e a consciência.

O fato é que matéria e energia estão diretamente relacionadas. Não entraremos nesse assunto de domínio da física quântica, por demais complexo para nossa abordagem, mas não podemos deixar de citar os avanços de conceitos como o do entrelaçamento quântico que abrem espaço para uma série de especulações associadas à espiritualidade.

Muitos desacreditam da influência da espiritualidade na saúde por não obterem na ciência as respostas desejadas; aí entramos em outra discussão que não cabe nesse texto que é a questão da fé e de suas relações com a ciência. O desenvolvimento da ciência é essencial para a humanidade, o que não a torna absoluta. Negar um fenômeno por não conseguir explicá-lo não me parece razoável.

Seria então a ciência um obstáculo à aceitação e prática da espiritualidade na saúde?

Podemos considerar que ciência é geração de conhecimento e método de obtê-lo. Conhecimento para explicar os diferentes fenômenos, naturais ou não, e método para descrever e prever os fenômenos a partir de procedimentos que possam ser verificados e reproduzidos. Na realidade o conhecimento científico é questionador no nível das pessoas que o desenvolvem e requer uma base teórica e comprovações experimentais sujeitas a revisões com o tempo. Não acredito, especialmente nos dias atuais, que esse obstáculo exista de forma relevante, apesar de no passado isso ter ocorrido de fato.

Se inata ou adquirida, a espiritualidade pode ser exercitada e desenvolvida por meio da meditação, da contemplação, da religião, da arte, da música, do contato com a natureza, da generosidade, do pensamento positivo, dentre outras formas imateriais.

Como se desenvolve a espiritualidade?

A espiritualidade está ligada ao indivíduo, ao seu próprio entendimento da vida, aperfeiçoada ao longo do tempo e influenciada pelos seus meios social e familiar, podendo ter conotação para o bem ou para o mal (lembrando que existem casos em que a fé nem sempre faz bem, quando aquilo em que se acredita é inspirador de culpa, medo e punição). Mas o que potencializa essa energia transformadora, capaz de auxiliar os processos de cura?

É esperado que um indivíduo que se desenvolveu em um ambiente onde predominam a fé, o otimismo, o pensamento positivo e a compaixão, tenha uma espiritualidade mais elevada. Esse indivíduo, ao focalizar seus pensamentos para o bem, é capaz de influenciar outros indivíduos criando mais fé e mais compaixão em suas ações. E assim formam-se círculos virtuosos que potencializam pensamentos e ações positivas, trazendo para perto outros indivíduos que estão sintonizados nos mesmos objetivos.

Não é raro nesses casos alguns indivíduos manifestarem especial aptidão para desenvolvimento de atividades terapêuticas, a exemplo de algumas práticas integrativas e complementares em saúde (PICS), que são recursos terapêuticos que buscam a prevenção de doenças e a recuperação da saúde.

No âmbito da fé religiosa a oração ou a prece é outra forma de se desenvolver a espiritualidade. As orações buscam estabelecer uma conexão íntima com uma crença de ordem superior. As orações são feitas basicamente de duas formas: individual, pela qual se busca uma conexão direta e individual com o ente superior e coletiva, quando partilhamos com outros nossos anseios comuns. Tudo leva a crer que essa conexão com o ente superior por meio da oração é uma forma de acessar níveis de energia que estão “disponíveis” para todos.

O poder das orações e do pensamento positivo, são apenas um exemplo da dimensão sem limites que o imaterial tem para poder intervir na nossa saúde. A convivência com uma doença neurológica degenerativa como o Parkinson, ainda sem cura, muitas vezes é tratada de uma forma carregada de sofrimento e renúncia à uma vida ativa, autônoma e independente, sem perceber que são inúmeras as possibilidades de enfrentamento em meio ao caos emocional que se estabelece a partir do momento que você recebe o diagnóstico e se vê diante de uma necessidade de mudanças nunca imaginadas. Acredite que sua espiritualidade é sua parceira nesse processo e que pode ajudá-lo muito.

Espiritualidade e acolhimento

Muito tem se falado sobre o acolhimento dedicado pelo profissional da saúde ao paciente como forma de aproximação e geração de confiança. Pacientes devem ser tratados como pessoas completas, considerando suas dimensões físicas, emocionais e espirituais. Para muitos, a espiritualidade é uma parte importante da integridade e, ao abordar os aspectos psicossociais na medicina, essa parte de sua existência não deve ser ignorada. Não tenho dúvidas de que o conforto transmitido quando um médico entende aquilo que dá sentido e esperança às expectativas do paciente, isso contribui de alguma forma para sua cura.

Apesar das evidências positivas, ainda são poucos os profissionais da saúde que abordam a espiritualidade em seus atendimentos. Várias causas contribuem para essa situação, e de tudo que pude observar nos ambientes do SUS, a falta de tempo na relação médico / paciente é a principal de todas. Um pouco de preconceito associado à falta de conhecimento sobre o assunto também contribui para o receio de serem levantadas por alguns pacientes discussões intermináveis sobre religião.

Outra situação emblemática, que é uma questão pouco discutida, é se os profissionais da saúde devem orar com os pacientes; esse assunto é por demais complexo, já que envolve aspectos da ética profissional e foge à nossa capacidade de opinar.

Todas essas considerações se constituem em evidências de que é possível desenvolver a espiritualidade e com ela realizar boas práticas que podem mudar a sua vida e a de outros.

Apesar da satisfação de ver o interesse neste tema crescendo, é necessário que se tenha cautela com indivíduos e grupos que se aproveitam do desconhecimento relativo do assunto para disseminar informações falsas e propor soluções inviáveis para questões sem nenhum compromisso com a elevação espiritual das pessoas.

A boa notícia é o crescente interesse pelo tema com a formação de grupos de estudos avançados em Universidades, inclusive aqui no Brasil, a exemplo do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora NUPES – UFJF (https://www2.ufjf.br/ppgsaude/curso/linhas-de-pesquisa/nupes-nucleo-de-pesquisas-em-espiritualidade-e-saude/   – último acesso em -7 de julho de 2023) e da Liga Acadêmica de Saúde e Espiritualidade da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC (https://www.facebook.com/ligasaudeeespiritualidade.ufsc/?locale=pt_BR – último aceso em 08 de julho de 2023).

Considerando o tema complexo que é a espiritualidade, incluí algumas referências da literatura técnica para eventual consulta e leitura pelos interessados. Para aqueles que desejam uma visão mais completa com uma abordagem mais objetiva no nível operacional, recomendo a leitura do “Manual de cuidados paliativos” produzido pelo Ministério da Saúde; veja o link: https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2020/September/17/Manual-CuidadosPaliativos-vers–o-final.pdf  (último acesso em 07 de julho de 2023).

Os artigos técnicos selecionados são os seguintes:

  1. https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/1843381 (último acesso em 18 de fevereiro de 2022).
  2. https://www.acpjournals.org/doi/abs/10.7326/0003-4819-132-7-200004040-00010 (último acesso em 07 de  julho de 2023).
  3. https://revistamedicinaintegrativa.com/espiritualidade-e-religiosidade-e-seus-impactos-na-saude/ (último acesso em 07 de julho de 2023).
  4. https://semanaacademica.org.br/system/files/artigos/artigo-espiritualidade-sentido-de-vida-e-saude.pdf (último acesso em 07 de julho de 2023).
  5. https://www.revistas.usp.br/revistadc/article/view/110789 (último acesso em 07 de julho de 2023).
  6. https://doi.org/10.11606/issn.1679-9836.v92i4p224-235 (último acesso em 07 de julho de 2023).

Vou finalizar esse texto com uma questão muito particular que pode ser compartilhada com todos: hoje, com a experiência e a consciência de quem convive com a doença há mais de sete anos, o desenvolvimento de minha espiritualidade me coloca o seguinte questionamento: por que fiquei doente? O que fiz ou deixei de fazer com meu corpo e minha alma para provocar essa disfunção? Com certeza as respostas estão dentro de mim e é lá que devo buscá-las.

E você, já pensou nisso?