Desapegue

Marcus Carvalho Fonseca

Texto disponibilizado em mar/2022. Se quiser baixar este texto em pdf clique aqui.

Os conteúdos apresentados neste texto são apenas informativos e não se constituem em artigo técnico científico. Seu objetivo, junto com os demais textos disponíveis aqui no website é, por meio de uma abordagem introdutória de temas pouco discutidos entre nós, contribuir para que possamos entender com mais clareza o contexto da doença de Parkinson (DP). É importante ressaltar que não sou profissional da área da saúde. Portanto, não utilize de forma alguma nenhuma parte do conteúdo para automedicação. Trata-se de um conjunto de informações obtidas pela experiência e conhecimento adquiridos ao longo de anos com Parkinson e em pesquisas na internet. Ou seja, são textos escritos por um leigo para leigos.

Certa vez estava sozinho com meus pensamentos quando, sem nenhum estímulo da razão, fui tomado por um pensamento automático, desses que surgem do nada, me sugerindo a realização de um 5S na minha casa. Como devemos manter nossa mente sempre ocupada com pensamentos positivos, deixei-me levar pela ideia que, certamente, era uma estratégia inconsciente para me manter ativo.

Olhei em volta e percebi que de fato nem lembrava mais de algumas coisas que me eram queridas ou essenciais há alguns anos. Por algum motivo, nesses últimos tempos de isolamento social perdi uma parte do apego a coisas em geral. Lembro-me que nas semanas que se seguiram ao diagnóstico da DP, há sete longos anos, senti uma forte onda de desapego às coisas materiais, mas nesse caso eu entendo pois estava com minha autoestima no fundo do poço. Agora não, a situação é diferente.  Sinto que já faz parte de mim esse senso de irrelevância por coisas materiais. O que terá acontecido?

Mas antes de seguirmos com essa prosa, penso que alguns de vocês provavelmente não conhecem o 5S. Vamos ver um breve resumo.

O Programa 5S teve sua origem no Japão, na década dos anos 50, dentro de um enorme esforço de recuperação de sua infraestrutura. Esse método é assim chamado devido à primeira letra S de 5 palavras cuja tradução para o português varia um pouco, dependendo dos autores: Seiri – Senso de utilização; Seiton – Senso de organização; Seiso – Senso de limpeza; Seiketsu – Senso de padronização e Shitsuke – Senso de disciplina.

O 5S é um programa desenvolvido para empresas cuja essência pode ser adaptada para uma série de situações, inclusive para nossa casa. De uma forma geral, o 5S exige uma disciplina rígida quanto às exigências de manter os ambientes limpos, manter cada coisa em seu lugar; ter um lugar para cada coisa; manter à vista tudo que é utilizado com frequência e encontrar qualquer coisa em um tempo mínimo, tipo 30 segundos. Com essa disciplina, os principais benefícios são mais segurança, menos acidentes domésticos, economia de tempo buscando coisas, diminuição de movimentações desnecessárias, melhoria da percepção de limpeza e aumento do bem-estar pela organização, ordem e limpeza. Se você se interessar, veja algumas dicas de como implantar o 5S na sua casa, a internet tem informação suficiente, basta utilizar o buscador com o termo 5S.

Planejada a realização do 5S, negociamos, eu e minha companheira, o que poderia apenas mudar de lugar e o que poderia ser descartado. As palavras de ordem passaram a ser segurança, praticidade e desapego. E assim foi que começamos a brincadeira. A coisa até que foi bem no início, mas em alguns momentos prevaleceu o “isso eu não jogo fora de jeito nenhum”. Foi um exercício interessante de convencimento sobre o que era essencial ou não, ou seja, o que era descartável ou não. O resumo dessa história é que conseguimos nos desfazer de uma quantidade enorme de coisas que não precisávamos e de outras que tínhamos em quantidade desnecessária. É sempre bom lembrar que a prática da solidariedade ao doar coisas pode ter um efeito positivo sobre a autoestima. E como dizia o famoso Profeta, ‘gentileza gera gentileza”.

Ainda sobre os efeitos do 5S na minha casa, algumas semanas depois, concluída a operação e observando o resultado, o mais interessante de tudo foi que, como pessoa com Parkinson, senti um alívio enorme ao olhar em volta e perceber que as coisas ficaram mais práticas, mais acessíveis para mim e isso, acreditem, me trouxe um novo ânimo. Mas minha mente inquieta não me deu muito tempo e logo me deixou algumas questões para reflexão: “por que acumulamos?”, “por que precisamos guardar tanta coisa que nem usamos?”, “por que é tão difícil desapegar?”.

O argumento muito utilizado de que “um dia podemos precisar disto” é tão convincente quanto nossa capacidade de encontrar uma melhor desculpa. Mas nem sempre é uma desculpa, e nesse ponto é importante discernir a prática usual de guardar coisas e lembranças, da acumulação compulsiva que é patológica e que não avaliaremos nesse texto, uma vez que se trata de matéria que envolve problemas emocionais mais sérios e por vezes até distúrbios psiquiátricos.

O ato de acumular é mais comum do que pensamos, pois desde a infância assumimos a posse de objetos como parte de nós mesmos. Com o passar do tempo, especialmente no envelhecimento, muito do que acumulamos se torna inclusive referência de relacionamentos interpessoais.

Não podemos esquecer também que a massificação do consumo imposta pelas diferentes mídias faz com que a posse de objetos seja sinônimo de status e valorização social.

Muitas vezes desapegar é uma decisão difícil porque além de sempre querermos mais e de criarmos laços afetivos com coisas materiais, somos geralmente reféns do medo de não ter.

Há um trecho na música Esquinas de Djavan que resume bem essa situação: “sabe lá, o que é não ter, e ter que ter para dar”.

Hoje vejo que muitas pessoas acreditam que o desapego implica somente em abrir mão de coisas materiais, quando na realidade é muito mais do que isso.

O desapego deve ser um processo em busca do equilíbrio “corpo – mente – alma”, nos livrando de sentimentos que nos fazem mal e deixando a vida mais leve. Essa é a chave de tudo: tornar a vida mais leve!

Os bens materiais podem nos trazer algum tipo de conforto ou satisfação momentânea, assim como alguns relacionamentos pessoais, mas temos que estar atentos àquilo que nos desequilibra e nos faz mal.

E como nós, pessoas com Parkinson, podemos buscar esse equilíbrio desapegando do que é desnecessário e emocionalmente negativo?

Seja simples!

A doença de Parkinson tem me ensinado muito e posso dizer que as equipes de terapeutas e os respectivos grupos de apoio dos quais participo têm sido fundamentais nesse processo. Hoje minha relação com a doença é totalmente diferente do que era três anos atrás. Uma das mudanças que vivi e que tem relação direta com o desapego é a simplicidade.

A simplicidade é uma característica daquilo que não é complicado, aquilo que não carece de explicação e tem facilidade de ser compreendido. A simplicidade se caracteriza pela ausência de adornos e periféricos desnecessários. Muitos confundem a simplicidade com a humildade. São coisas diferentes, sendo a humildade a virtude de conhecer as suas próprias limitações e fraquezas e agir de acordo com essa consciência.

Não é muito difícil entender que as pessoas têm seus desejos, expectativas e necessidades trazidas dos grupos sociais que convivem e, muitas vezes o supérfluo, a ostentação e a arrogância predominam e nós vamos aos poucos assumindo comportamentos que nos impedem de viver com qualidade.

Nesses casos, a terapia é fundamental e a experiência de participar de grupos de discussão na internet também tem grande valia já que o que nos une é a esperança de dias melhores. São espaços de diálogos abertos sem vaidades.

Pode parecer estranho, mas a doença de Parkinson inspira a simplicidade, já que na adversidade do enfrentamento de seus sintomas e sinais, é difícil encontrar espaço para vaidades, supérfluos e inutilidades. Desejamos tantas coisas essenciais relacionadas com a cura da doença que acabamos por nos tornar pessoas simples, abandonando resíduos de maus hábitos.

Quer pensar e agir com simplicidade? Desapegue, pois quem tem menos coisas para cuidar, tem mais tempo, mais espaço e mais estímulos positivos para experimentar novas formas de atividades prazerosas.

Quer desapegar sem culpas ou arrependimentos? Acalme sua mente e procure o “bom senso”. Busque em si mesmo a resposta se você precisa realmente daquilo que está em dúvida se descarta ou não. Dedique um tempo para a introspecção e reflita sobre o que está acontecendo com seu íntimo. Insista em manter a mente ocupada. Não é fácil, mas se não tentarmos não vamos conseguir.

Seja simples pois é com a simplicidade de suas atitudes e pensamentos que você encontrará os verdadeiros valores de sua casa, seu corpo e sua alma.

Pense nisso!